Mantida a ortografia original.
“A morte é um descanço”, ouvi algures dizer uma santa e preta velhinha a outra não menos idosa, mas com tal entonação que, parecia, estava de joelhos diante do Creador.
Ouvi, e logo passou-me pelo espirito a dissertação profunda que eu vinha de ouvir no Centro, sobre a fé na vida futura e suas bellezas, por um dos mais ilustres amigos, do espaço invisivel, que ali nos têm falado.
Passou-me pelo espirito todo aquelle ensinamento superior, divino, de divino mestre, porque, por vezes muitos tocara elle com arrebatadora eloquencia, eloquencia que lembrava Jesus no sermão da montanha, na superioridade, no contentamento da alma que parte — quando vibram sobre ella as leis naturaes para se operar esse phenomeno ainda em parte inescrutavel, que se chama morte — as correntes, os grilhões pesados da materia que o espirito considera o tumulo de suas faculdades, de seu poder, de sua liberdade.
E pensava: mal sabe essa velhinha — alma talvez bem proxima das regiões angelicas — que acaba de proferir uma das mais profundas sentenças da sabedoria popular, uma verdade que é para ella como Deus é para a humanidade terrena: pode ser sentido mas não pode ser visto. E’ uma verdade que ella sente, mas não pode ver, isto é, não pode definir.
A morte é realmente um descanço, mais que isto: é a volta do espirito ao seio da liberdade perdida, á patria verdadeira de seu nascimento: é o termo d’uma missão que, ao ser escolhida, lhe fazia tremer, e por vezes pedir ao Pae eterno coragem pala a lucta, impassibilidade para a tentação, resignação para a dor ....
Quando a morte golpêa, deixa cahido um cadaver, que ha ainda quem adore — os ciosos da materia podre — libertando um espirito que surge victorioso e contente no seio do espaço infinito, a contemplar as multiplas phases do sua vida gravada na face granitica dos seculos; a estrada immensa através do tempo es tendida, por elle percorrida, sob e imperio de leis regulares e eternas que athestam a grandeza do Creador, do Pae eterno, da sabedoria infinita; quando essa lei, immutavel como todas as leis divinas, se faz sentir, para fazer cahir por terra um pouco de materia que vai “continuar a sua elaboração em transformações naturaes” e dar liberdade a uma alma “esse poder eterno que se agita independente do tempo e do espaço e que vôa a confundir-se com perfeições mais altas, com conhecimentos mais vastos e maiores virtudes”.
E’ grande, é profunda e incontestavelmente divina a philosophia que diz mais pela boca do humilde e cio que soffre: a morte é um descanço!
Quantos, orgulhosos do que pensam valer, orgulhosos do seu saber e do seu ouro, riem d’esta expressão, mórmente quando ella sai da boca dos pobres de espirito de que falou Jesus!
Vaidade humana! cegueira que só a luz do além-tumulo extingue!
Riem na plenitude da vida material, que julgam grande coisa, mas choram e sentem-se profundamente desgraçados quando a morte se aproxima!
Aqueles, os escarnecidos, abrem-lhe os braços com a alma superior e lucida, porque vão fazer, com as azas de sua fé na grande sentença que apenas sentem, na grandeza de tudo que ella envolve, o vôo que, humildes creem, parte do logar onde cai o corpo para o seio do bem, onde sómente impera o descanço, que, tomado em espirito como deve ser pela philosophia espirita, quer dizer: a paz, o amor, a fraternidade, a confiança, a caridade, a vida em summna, em sua mais perfeita manifestação.
A morte é o derrocamento do carcere da alma; é o anniquilamento d’esse corpo pesado que acorrenta brutalmente o espirito e o expõe ás ondas encapelladas das angustias, a todos os soffrimentos que o alanceiam.
Se os que temem a morte, os que sobre os cadaveres choram pelos que se foram e vestem luto, deixas sem as religiões de conveniencias e estudassem a maior philosophia dos tempos, o Espiritismo, não se entregariam a esses desesperos que por ahi se veem, com a morte, isto é, com a libertação d’um parente ou d’um amigo; desesperos que são blasphemias, gritos de revolta e de odio contra Deus, que com infinita perfeição, com sabedoria infinita tudo faz e dirige.
Saberiam que a alma, que deixa o corpo material, parte em busca da vida que só pela necessidade de penetrar os céos, um dia, d’ella se afastara.
Um cadaver não é mais que um tumulo vasio; d’este, a materia que o enchia, decomposta, sahiu para novos corpos; d’aquelle, o espirito que lhe era a vida, libertado, partiu para novos mundos.
lnhumnar um cadaver é metter um tumulo menor dentro de outro maior.
Isso não tem importancia. Busquemos o que já hoje tão fortemente nos fere os sentidos, d’alem d’esses dois montões de materia em diferentes modalidades.
A morte é um dos phenomenos do universo, que só tem importancia do ponto de vista moral, por causa do immenso bem que d’ella resulta para a alma; sob o ponto de vista material nenhuma importancia tem.
Diz-nos a grande philosophia do Divino Mestre, a philosophia que tem resistido á acção dos vendavaes fortissimos desencadeados, da passagem violenta e destruidora dos seculos: “morrer é desviar a visão do nervo optico que transmitte a imagem; é romper o pensamento através do craneo que o encerra; é eliminar a vontade do musculo que lhe obedece; é despojar a memoria das densas brumas da materia; é dar amplitude á materia sujeita a ondulações limitadas; é finalmente emancipar-se a alma da escravidão d’uma organização por natureza fatal.”
Chorar sobre cadaveres é dar o mais vivo attestado da falta de fé na sabedoria infinita do Creador; é pro var até sentir o vacuo da incerteza de sua existencia.
Só o atheu, se é que ha quem seja atheu (eu não creio), tem razão de chorar a morte dos seus queridos, e de ter pavor da morte.
Deus existe e é Pae amoroso e perfeito. Nada Elle fez que não seja para inteiro bem de sua creatura; portanto, a morte é um bem e como tal deve sempre ser causa de satisfação e de festa, e nunca de choro e de luto.
Diz um grande philosopho: “Não fomos creados para a terra, onde não nada ha fixo nem determinado; onde tudo é transitorio e fugitivo; onde todas as esperanças se frustram e os desejos mentem ; onde nada ha que satisfaça a melhor porção de nosso ser; onde o tempo nos constrange e a necessidade nos tyranniza; onde em vãos esforços nos debatemos; onde, finalmente, ha um acabar que não pode ser nosso destino.”
De facto; nós fomos creados para o descanço de que fala a grande maxima; fomos creados para o amor, para as venturas sem termo, 1ara a felicidade suprema, para as grandezas reaes do universo.
Diante de tal perspectiva, é licito a quem crê em Deus temer a morte e lamentar quem morre? Não; é, pelo contrario, unia blasphemia; é a re volta da creatura, que só humilde e crente deve ser, contra seu Creador misericordioso e perfeito!...
Ahi está como a velhinha humilde dizia uma grande verdade; verdade que dizem todos os espiritos de boa vontade, como o proprio Deus.
O espirito tem tanto mais prazer e mais descanço quanto mais liberdade tem e mais trabalha. Comprehende- se, portanto, que o espirito na carne, como está provado, não tendo liberdade nem podendo trabalhar como deseja, “a morte é um descanço.”
Reformador, 15 de abril, 1911