As igrejas jamais explicou coisa alguma relativamente à origem das almas. Entretanto, os teólogos são quase todos acordes em afirmar esta proposição: “sempre que uma mulher concebe, Deus cria uma alma e a infunde no ventre da genitora da habitar o corpo do filho”. Mas, semelhante proposição esbarra em dificuldades irremovíveis.
Ou Deus não existe ou infinitamente justo. Ora, se é infinitamente justo e se as almas chegam a Terra logo depois de saírem novas em folhas das suas mãos, como se há de explicar a escandalosa desigualdade das nossas condições terrenas? Porque será que aquele homem veio ao mundo com um corpo robusto e sadio, ao passo que seu irmão nasceu enfezado e disforme? Porque nasceu este num palácio e o outro numa pocilga? Porque razão um encantadora francesa e não uma horrenda crioula? Poderiam multiplicar-se ao infinito estas interrogações, a que a Teologia não encontra meio de responder senão com as seguintes luminosas palavras: “DEUS ASSIM O QUIS”.
Mas a desigualdade das condições nada é em face da das próprias almas. Explicai-me porque denotam elas, desde as mais tenra idade, aptidões e pendores tão diversos independentemente de toda a educação. Na imensa coletividade humana, dois Espíritos talvez não haja que se assemelham. Aqui estão dois meninos nascidos dos mesmos pais e submetidos às mesmas influências. Um, se bem que muito estudioso, conserva-se sempre medíocre, ao passo que o irmão, embora pouco aplicado, conquista todos os prêmios. Um depenará vivo o pássaro que lhe cair nas mãos, enquanto o outro não poderá ver, sem que as lágrimas lhe brotem, castigar um animal. Um se mostrara egoísta ao ponto de tudo querer para si; o outro se revelará generoso ao ponto de nada para si guardar. O primeiro parece “demoninho”, o segundo um “anjo”.
Porque tal contraste? Dever-se-á imputar ao organismo esta diferença? Mas, então cairemos no grosseiro sistema dos materialistas. Será cabível dá-la como resultado de uma “predestinação” arbitraria? Nesse caso, já não haverá como rebater a blasfêmia do ímpio: “DEUS NÃO É JUSTO”.
Referindo-se aos dois filhos de Rebeca, assim se exprime o apóstolo Paulo: “Quando ainda não tinham nascido e nada haviam feito de bem ou de mal, foi-lhes dito, não segundo as suas obras, mas segundo aquele que os chamava: o mais velho servirá ao mais moço, conforme está escrito: Amei a Jacó e tive aversão a Esaú.”
Ora, se, quando ainda no ventre materno, uma daquelas almas inspirou amor e a outra aversão, é que Deus não acabara de criá-las naquele instante, porquanto Deus só cria o que Ele ama e não o que Ele detesta. O próprio Satanás (se existisse), segundo a Teologia, foi criado por amor.
Admita-se a preexistência das almas e todos os mistérios se desvendam. As desigualdades provêm do fato de já as almas terem vivido, tirando umas vida mais proveito do que as outras e adiantando-se mais; ficando outras atrasadas na senda do aperfeiçoamento. Jacob representa as primeiras e Esaú as demais.
Santo Agostinho propôs a S. Jerônimo um sério problema nestes termos: “Quando a mim, mesmo me interpelo sobre os sofrimentos das crianças, vejo-me em grandes angústias e não sei que responder. Não falo unicamente das penas que, depois desta vida, acarreta às crianças a condenação em que elas necessariamente incorrem se deixaram sem o sacramento do Cristo. Falo das que, mesmo nesta vida, por entre os nosso lamentos, sofrem as nossas vistas. Torna-se preciso demonstrar como podem estar sujeitas, com justiça, a tais sofrimentos, sem que lhes hajam elas dado causa, visto não ser lícito dizer-lhe que semelhante coisas sem que Deus o saiba, nem que impossível se a Deus resistir aos que as fazem, nem tampouco que Deus as pode fazer ou permitir, não sendo justas”.
Aquele que vê uma criança a torcer-se nas garras da dor compreende a aflição do santo bispo de Hipona e seu imenso enleio. Qual não será, entretanto, esse enleio, quando o problema é o dos milhares e milhares de crianças que morrem logo após os primeiros vagidos, ou os primeiros sorrisos? Que vieram fazer neste mundo inferior e o que será feito delas algures? A Teologia responde que tais crianças apareceram na Terra para ganhar céu, mediante o batismo, ou para ser sepultadas nos limbos, se morrerem sem este sacramento. Mas, porque semelhante diversidade entre os destinos eternos dessas criaturinhas, sem que nada tenham realizado para merecê-los? Sobretudo, como admitir-se que o destino possa depender da paixão de duas criaturas culpadas?
Eis que se prepara a maior manifestação do Criador, a produção de uma alma, isto é, de uma potência destinada a seu serviço, ao seu amor, à sua glória, de uma potencia premeditada em sua sabedoria pelas ações infinitas da imortalidade, numa palavra: sua própria imagem, e quem Lhe indicará, à vontade, o momento de tirar do nada essa magnifica obra? Coisa inaudita! Baixeza d’alma e, não sei se figa, embora repelindo-a, baixeza do Criador seria libertino, num acesso lúbrico, ultrajando pelo estupro ou pelo adultério todas as leis do céu e da Terra, fizesse um infame sinal àquele cujo olhar perscruta e a onipotência, decidindo-se a criar, desse o ser à alma infeliz que terá de acompanhar o fruto do deboche! Não, jamais concordarei em que o milagre da aparição de uma nova alma no seio do Universo possa decorrer de uma adição dessa espécie.
A nossa doutrina, poupa tais revoltas à consciência e à razão. Para nós, uma criança que sofre é um Espírito encarnado a expiar faltas cometidas em anterior existência. Uma criança que vem ao mundo, ainda por efeito de um crime, é um Espírito criado desde muito tempo, que tenta o desempenho de nova tarefa e sofre nova prova. Uma criança que morre é um Espírito cujo envoltório se destrói e que procurara outro, seja aqui, seja alhures, depois de ter sido para seus pais motivo de conquista de novos méritos, pelas aflições que lhes causou.
Trecho do Livro “O Espírito Consolador”
Padre V. Marchal.